Na iminência do incêndio, o inominável já está à espreita. Uma precisão de dar vida a um que toca, machuca. E lá vai o demônio... embaixo da mesa, na ponta dos dedos, pelas costas, beiço colado ao ouvido esquerdo. De mãos dadas com o diabo, vou ao caminho de Deus.
Re-bento. Antes de Maria cerzir as próprias fissuras, o batismo é consumado – a obra já nasce benzida pelo coxo. Fruto de vosso ventre maldito e da maldade de escrever.
Ficamos assim: Deus é o significado, o diabo, o significante.
E aconteceu que ela mirou-se no Cinismo. Cismou. Adotou a corrente filosófica concebida por Diógenes e fez dela a sua própria filosofia. Num mundo estimulador de angústia e obrigações estúpidas, só mesmo a ironia - tão bem iniciada por Sócri - para nos fazer resistir à "ilusão do natural" que a sociedade nos condiciona; só mesmo o escárnio para nos fazer sobreviver ao despotismo da Alpha 60; sim, para suportar a dor do vazio e da essência que se mistura à sujeira e se torna merda, só mesmo vendo em tudo um grande e ignóbil chiste! Tão divertido...
E então ela seguia pela típica avenida já anoitecida e dominada pela aura que acaba de receber: a noite e seus fantasmas. Empregava no passo o acelerado e nervoso ritmo dos temerosos. Vinha com a alma cheia de lapsos deturpados e espasmos literários. Ela pedia. Em sua perspectiva animista, sua presença estabelecia comunicação com a "alma" daquele poderoso símbolo urbano. O diálogo funcionava desigual: de um lado, o imponente complexo citadino, do outro, a ínfima criatura. Prosseguia, contrariava a maré: agredida pelo medo imposto, retribuía com provocações. Que divertido a menininha indefesa ameaçada pelo perigo da rua. Se a violência é fruto social, quero viver a sociedade intensamente. Que bonito experenciar essa realidade construída. Pé-ante-pé, o destino se faz longo, a ironia é também externa. Em meio ao conflito interno, avista pequenas e excitadas sombras. Algo nasce. Aquela que retrucava se cala. Ela e as novas almas se aproximam. Dois moleques a cercam - corte para a evocação de imagens - algo no íntimo é tocado, os conselhos dos mais velhos, os "índices alarmantes", as notícias do jornal -, o Outro a busca. Asfalto, chinelo, um sorriso ameaçador. E é ele quem efetua: num estalar, direciona a boca e lasca um beijo em seu seio. "Pronto, beijei a florzinha dela". Muitas risadas. O empurrão exaltado dá conta de liberar o então bloqueio no caminho, um choque de braços, um choque. [Ninguém mergulha duas vezes na mesma realidade social, nunca será a mesma pessoa, nunca será a mesma realidade] Contrariados pela audácia da "menininha indefesa", partem para o ataque, eles teriam de sair vitoriosos. A vitória, aqui, é a humilhação da classe - personificada pela garota - que sempre os humilhou. E ela já ia andando na frente, incerta com o passo e com a alma, até que foi alcançada por eles. Um a segura, imobilizando-a com o puxão de seus braços para trás; o outro a encara, feição irônica: "Quanta pressa", desliza os dedos por entre os fios de cabelo dela, em seguida, sob um dos seios e abre um dos botões da camisa dela. Um chute desesperado. Eles lutam - é a luta, é a luta -,tapas e socos. Ela se desvencilha. Corre-corre. Perseguição acirrada: a classe dominante na frente, em minoria, perseguida pela classe dominada, em maioria, perseguindo a classe dominante, em minoria. Em velozes passagens de imagens, sobrepostas e mescladas, a cabeça num zumbido metralhada por lapsos, o fôlego que está por acabar e, enfim, alcança a estação de metrô. Fim da perseguição, início de quê? Em meio a lágrima, o orgulho choroso: Tão divertido, tão divertido...
Refutando a lógica vigente, as regras do jogo, o condicionamento, o poder simbólico, a tendência, a trajetória autônoma, a ideologia subentendida, o hábito que se sobressai à própria convenção e se torna costume social. Nós, os inadaptados e potencialmente suicidas, os subversivos de Alphaville, negamos o "reflexo mental", a ação não-calculada e automática, o efeito do Grande Campo. Contra o inatismo dos pressupostos, a preocupação imanente, o medo estuprador, a análise padronizada, o desespero coerente. O desespero coerente.
Só o absurdo nos faz feliz.