Na iminência do incêndio, o inominável já está à espreita. Uma precisão de dar vida a um que toca, machuca. E lá vai o demônio... embaixo da mesa, na ponta dos dedos, pelas costas, beiço colado ao ouvido esquerdo. De mãos dadas com o diabo, vou ao caminho de Deus.
Re-bento. Antes de Maria cerzir as próprias fissuras, o batismo é consumado – a obra já nasce benzida pelo coxo. Fruto de vosso ventre maldito e da maldade de escrever.
Ficamos assim: Deus é o significado, o diabo, o significante.
“Você gosta de homem?”
E foi assim que a menina rompeu o silêncio. Direta, inocente, curiosa, transparente. Era de se esperar. Esse tipo de indagação sempre surge nos momentos mais improváveis, nas épocas mais curiosas. "Deus é mesmo um cara gozador", ela deve ter pensado ao ouvir isso. E, depois de proferir dantescos urros e ofensas ao Homem, tratou de pensar em algo para responder à menina, tentando fazer tudo isso de forma natural, é claro. Enquanto codificava um raciocínio aparentemente complexo para que uma explicação plausível chegasse até a menina, mil imagens nasciam na mente. Espasmos céleres que se alternavam para a representação de um movimento, de uma trajetória. Como um filme, um musical. Sim, aqui é tudo muito surreal, baby.
“O velho Deus inventa a guerra...”
Nietszche ainda me paga, esse libriano safado, esse herege filho-da-puta. Me fez cristã em um mês: convicta. E ainda se fosse só isso... O maldito foi além: esfregou a Perfeição na minha cara, fez vir à tona meus mistérios lingüísticos, meus traumas barrocos. Tudo isso ao som das melodias catárticas e epifâncias. Zombou dos meus medos mais intrínsecos, humilhou minha consciência mais mascarada. Niet, essa contradição personificada, repleta de recalques, frustrações e doença: Niet é o barroco sem precedentes: a dialética precípua: o demônio anunciador, o anjo terminal: Niet é como o teólogo que tanto abomina: categórico, julgando-se superior à toda corja ínfima, o resto. Afinal, o resto é só humanidade...
“A Ética é uma vaca!”
O aforismo alegórico gritado fez sentido aqui dentro. Foi lançado com força - era um seta de direção premeditada -, veio destruindo tudo que estivesse no caminho, insano por chegar logo ao seu destino, por atingir seu objetivo e abrir a ferida. É que vocês precisam compreender um ponto importante. Dado o humor negro de Deus, as coincidências (as eternas malditas coincidências) são apenas frutos de um cotidiano surrealista, prole prosaica que encontra refúgio em vidas fadadas a serem líricas e, óbvio, surreais. Deus surge nas indiretas, no implícito, em cada silêncio perfeito, em cada amor infinito, em cada átimo sarcástico e em todo detalhe que significa tudo. Aqui, a banalidade é encarada como meio para o contato com o sagrado, ou seja, a epifania. E daí que aconteceu que Ele me mandou mais essa. Toma, idiota. Por que, afinal, o que é a Ética? Essa minha musa, esse meu algoz, essa minha Vaca.
“Mas eu não eu busco ser inovador. Eu sou.”
Uhhhh... Contundente. Perfeito: odeio falsa modéstia. Ele é mesmo tão barroco quanto eu. Um anjo caído, um anjo-prostituto, um anjo-cão... o meu anjo. Mas eu conto o que sucedeu após o comentário. Em seguida: soltei uma risadinha irônica, dessas que zombam de uma aparente pretensão. Ele não entendeu, ficou em silêncio. Ser inovador, excêntrico, maldito. E afirmar que se é tudo isso! Perfeito! Fiquei com a frase na cabeça, admirando o seu tom egocêntrico, sacana e também a coragem, a autoconfiança, mesmo que nada disso remetesse àquela figura singela. Dias depois, por telefone, foi solucionado o mal-entendido. Ele quis dizer que não buscava ser inovador, e sim que simplesmente era ele mesmo, inovador ou não. A oração "Eu sou" já encerra seu próprio sentido completo de ser. Simplesmente.