breve-brevíssimo ou aquele morre-não-morre

Na iminência do incêndio, o inominável já está à espreita. Uma precisão de dar vida a um que toca, machuca. E lá vai o demônio... embaixo da mesa, na ponta dos dedos, pelas costas, beiço colado ao ouvido esquerdo. De mãos dadas com o diabo, vou ao caminho de Deus. Re-bento. Antes de Maria cerzir as próprias fissuras, o batismo é consumado – a obra já nasce benzida pelo coxo. Fruto de vosso ventre maldito e da maldade de escrever. Ficamos assim: Deus é o significado, o diabo, o significante.

domingo, 13 de fevereiro de 2005

 

Trilogia Vida-Morte-Morte-Vida

A natimorta

"meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com a vida."

O verão nas cidades grandes sempre lhe fora nada aprazível. Trocando em miúdos, o verão de São Paulo sempre lhe era abominável. Uma noção grotesca de realidade, uma imagem deveras repugnante. A estação calorenta era sua expressão máxima de Escatologia, o significado mais próximo de Inferno concebido por ela. Os corpos, nas ruas, rastejavam peçonhentos e serpejantes sobre o asfalto tórrido, massas sacolejantes que iam-vinham sem rumo definido [onde existe rumo definido?]. A moleza do espírito remetia à moleza da matéria: uma matéria morta e flácida: um amontoado de carne com dois olhos semi-cerrados. E era assim que se sentia naquela noite de janeiro. [Não havia vida, só havia a falta do ânimo.] Sozinha e entregue aos devaneios e aos insetos, Rita ostentava seu vestido cinza curto de alças. Os insetos, aliás, representavam tomo à parte na empreitada de veraneio. As moscas e os mosquitos: guardiões do purgatório a velar a defunta; os pernilongos: dragões sanguessugas, monstros insaciáveis. Uma barata, amiúde, estragava-lhe o dia. Ouvindo o zumbi-zumbido dos dragões-vampiro e, antes de enlouquecer ao som-tortura, despiu-se do lençol úmido, entregando a carne já tão cobiçada. Um forte odor elevou-se do seu corpo e ali, estendida, naquela cama, naquela noite, algo como enjôo, angústia, mau presságio e desespero veio fazer companhia. Foi, então, que, a lembrança matutina daquela barata quase morta [somos todos, como aquela barata, uns quase-mortos, uns quase-vivos], que parecia agonizar num dos vários cantos da cozinha, veio meter-lhe com as idéias. Lembrou-se de que a havia desejado profundamente por um segundo: as antenas e todo o resto: tudo lhe pareceu delicioso. [Agüenta ouvir: sossega e agüenta mais um pouco: o horror, o medonho horror, pode ser bem mais saboroso que o sonho, que geralmente é mole e rosa demais.] E o bom é que o horror é preciso. Não houve amor, só houve o desejo, que é coisa mais certa, Rita só a quis naquele instante, só a quis intensamente, só. Mas depois vieram os sustos, os medos, o asco, o desprezo e todas aquelas frescuras que as mocinhas bem-nascidas sentem ao se deparar com uma barata. Tentou afasta-la de si, com uma vassoura, para o ralo [que é para onde a gente manda os causadores de sustos, medos, asco e desprezo, e foi aí que tudo isso despertou e], ela [explosão], recuperando surpreendentemente a vida [explosão], correu para baixo da geladeira. Não saiu por nada. Rita chorou a manhã inteira. E foram lágrimas tão quentes!...


O estupro

"E agora, se abre o chão e te abriga
lençol que não tiveste em vida.
Se abre o chão e te fecha,
Dando-te agora cama e coberta.
Se abre o chão e te envolve,
Como mulher com quem se dorme."

Quando a primeira gota de suor riscou uma de suas têmporas, Rita foi tomada por um golpe de arrepio que chegou e se foi tal qual um bólido que passa. Seu corpo, perpassado pelo meteoro, soube de imediato a natureza do que estava por vir; enrijeceu-se, tremeluziu e esperou pela Grande - grave-gravíssima - Chegada. Quanto à alma [essa carcereira], nada entendeu: prostrou-se sobre infinitas reflexões, idéias que nasciam-jaziam, pensamentos fadados a serem varridos pelo olvido cruel, num teatro pseudocatártico, num redemoinho falsamente inspirado de lapsos-lâminas eternos [inimiga da vida, produtora de embustes! A mais ínfima personagem, a que me rasga eterno]. E foi então que Rita, deitada e suspensa pela cama, com um dos braços [avisa que é o direito] apoiando a cabeça e com os olhos fixos no teto que a obnubilava na mesma medida que a pressionava, sentiu. De súbito, o terror: mudo, pasmoso, imobilizante, que cedeu lugar à profusão sinestésica de sensações invertidas e desencontradas. Aliás, certas e coerentes, porque é a Sinestesia a mestra máxima, a lição egrégia de todos os sentidos. A suprema sensação; o sentir mais, o mais-sentir; o sublime verbo. E ela se fez sublime e obedeceu o dito divino, sentiu. Sentiu e reconheceu: reconheceu-se. Reconheceu o ser que a matara de saudade e coisa ainda mais profunda e dolorida que isso [o mais profundo é sempre o mais pungente], reconheceu aquela que agora repousava na parte interna de seu braço direito levantado. Rita não moveu a cabeça, não olhou, não podia. Não pôde controlar o tempo em que a barata permaneceu sem qualquer movimento - cada segundo era um bólido orgástico, cada instante era um sempre -, mas aconteceu que ela se moveu e iniciou um percurso pelo braço que continuou ao longo da axila até penetrar o vestido cinza-curto-de-alças. Devidamente habitada e ao atravessar o seio [aquele, o direito], elevava-se e abaixava-se conforme a respiração arquejante daquele corpo feminino que oscilava entre desespero e conformismo. E, assim, caminhando rumo ao umbigo, ainda por entre as costelas, vagava, soberba e imperial, com seu objetivo inexorável, fazendo valer o tal conceito de serventia das idéias fixas. E se essa não teve serventia, eu não sei o que pode ter: já no ventre de Rita, deslizou por ele até o encontro com os pêlos e o posterior alojamento na vagina; Rita temeu, gritou [e foram urros tão dantescos, berros descomunais], tentou desvencilhar-se das amarras da repulsa e da amordaça do pavor - em vão -; sentiu um forte enjôo e de repente, sentiu que, não podia, sentiu que estava prestes a, mas lutou contra até o fim e, no fim, derrotada, não pode contê-lo. Gozou.


O parto

"E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida"

O início da vida trouxe o Sol: o dia nascia, a mulher re-nascia. E aconteceu que ela despertou: corpo e alma amanhecendo. Despertou de um sono-sonho mágico; era uma cansada, uma maldita; era livre. [A ilusão nos pega de surpresa, sem explicação, vem amoral e absoluta.] Os restos da humilhação e do desespero vividos foram [e eu vou esfregar: porque toda penetração, porque todo coito, porque todo ato que pressuponha uma posição fetal é humilhante e toda cópula, um trauma, aviltante], paulatinamente, cedendo espaço a sensações de desconforto íntimo e euforia secreta. Os olhos, surpreendentemente vivos, eram duas bolas de fogo, vulcões na eminência de sua erupção. Entendeu-se assustada. O que viria a seguir? [A conseqüência do rebaixamento é sempre dádiva assustadora.] Um não-sei-o-quê ansiava pelo Sol, uma urgência de manhã. Uma quentura tomou-a inteira: no calcanhar, na parte de trás das coxas, por entre as pernas, nos ombros, na nuca. E, num estalo, uma pontada. Uma expectativa ofegante, um tremor-terror, o ar pesava sufocava tentava esganá-la ela perdia os sentidos desmaiava ressurgia outra pontada, ah. Seu sexo latejava, salientava-se, era alfinetado ininterruptamente. Parecia o fim. Sentiu-se encharcada de carne-geléia, gordura, urina, visgo, sangue. Uma dor aguda, mortal, vital ia-vinha em forma de ferroadas. Sentiu que ia morrer, que uma chaga infiltrava-se no seu corpo e que era preciso força para não se findar. E durante infindáveis minutos-segundos-horas-que-não-se-sabe-precisar, implantou uma força impenitente para expurgar o mal, pressão para se exercer o vômito pela vagina. [Meu Deus, como a vida vem terrível.] E - sem quase ter tido tempo para ouvir seu sino de ouro tocar -, numa explosão, na erupção, no susto, na detonação da bomba-vida, na comoção geral de todos os órgãos de sentidos, a concepção lhe chegou em cachoeira. Aterrorizada e imóvel, despejava por entre as pernas sua prole, seu fluxo precípuo e contínuo de existência. E elas saíam como raios do corpo abençoado, famintas de Sol, um enxame: dezenas, centenas de baratinhas, uma torrente delas que inundavam sem pausa aquela cama, que inundavam aquele quarto, que inundavam a casa e a vida que, finalmente, agora, era menos vazia.


"Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida"

Comentários:
Quase gostei.
Você não é a Clarice Lispector.

[vou reler pra achar um comentário mais contundente.]
 
Deturpações S.A.
 
Não existe nada nesse mundo que me dê mais nojo, horror e medo do que baratas. Acho esses seres asquerosos e totalmente horripilantes. Se encontro um desses pela rua ou em qualquer outro lugar, grito feito louca e subo no lugar mais alto que encontro. É uma coisa pavorosa esses bichinhos. Então, você não imagina como foi díficil ler essa descrição sobre baratas. Mas se serve de consolo, eu li até o final e lhe digo de coração aberto: ADOREI!!! Acho extremamente interessante a forma como a história acontece. Crônica e poesia junto. Quer coisa melhor do que isso?! Inovador, totalmente inovador... Com certeza, não teria acesso a um desses textos antes de te conhecer. Para quem estava acostumada a romances água-com-açúcar e apenas sentimentos, isso é um soco na boca do estômago. Mas um soco bom!!! Mostra que a arte não tem forma definida... A liberdade de expressão é fundamental!!! Adorei o começo. A descrição das férias foi perfeita!!! Tudo de bom... E, sinceramente, adoro quando a morte é abordada. O seriado, da Tv à cabo, "Six Feet Under" ou " A Sete Palmos" trata da morte de uma forma totalmente nova. É considerada "a série fora de série da HBO". Quando eu comprar (se eu comprar!) a primeira temporada em Dvd, juro que te empresto. Acho que você vai gostar!!! Como falei no Catarse, a morte é um tabu e, como incoerência, é a única certeza de nossas vidas... Essas são coisas que nunca encontraremos explicações dentro da história da humanidade!!! Mas voltando ao seu texto, com certeza o lerei mais vezes depois. Acho que não absorvi tudo o que ele me proporciona. Talvez nem seja por seu grande tamanho, mas talvez por sua complexidade. Aqui simples palavras ganham sentidos novos e frases comuns, não são tão comuns assim. Não sei o que te inspirou para publicar tal obra (vou considerá-la assim, afinal é algo forte e marcante!!!), mas achei uma ótima escolha. Baratas, morte, vida, estrupo e parto... Elementos para uma ótima histórias. Elementos da vida... Perfeito!!! Você se superou mais uma vez.

Te adoro muito!!!!

Passe mais vezes no meu blog. Adoro ler seus cometários!!!

Beijos
 
*Uma moça em descompassamento consigo mesma suspeitou,
O texto perpassa pela vida através de uma fina mistura de estado de anseio e de estado de lugubridade. Palavras sinestésicas e reflexivas (acima de tudo) incorporam uma perturbação pelo seu entendimento, confesso. O obscuro relegado ao escuro, ao quarto de todos os medos, de todos os bichos-papões reflete nossa cela interior: "alma, essa carcereira". Posta-se a refletir sobre a infinidade de antisentidos que são encarcerados por ela numa vida. Se viajei, acho que fui longe mesmo: a barata, um animal segmentado, poderia representar o avesso da conduta humana - a não-segmentação dos causos humanos de vida. Um logro vacilante e vestigioso, obstinado em venturas e desventuras. Toda vida oscila entre desespero e conformismo. Teto opressor e aliviador, bem lembrado! Devemos defendê-la com uma instantaneidade viva: desilusões, ilusões, luta, perdas, ganhos, fiascos, espetáculos, lindos horrores e horrores mais horrorosos ainda de serem superados. "A vida vem terrível" e servir as idéias de modo servil, é matar aos poucos nosso 'esperar' diferente de vida a cada dia. Ilusão ou não, a germinação ou renascer incidi sobre nós como feixe de múltiplas pontas, múltiplos entendimentos e desentendimentos (sempre com mais intensidade). Compassar o nojo de Rita ao inseto e sua germinação ao mesmo ("a mulher re-nascia"), nos dá a tendência ao sôfrego pertencer a algo - a um não-sei-quê de vida ou não-vida. Quando li o texto, clariciei um excerto de A paixão segundo G.H.: "Assim como houve o momento em que vi que a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar em mim a mulher de todas as mulheres".
"Onde existe rumo definido?" Respondo: em nada que contém o tudo. Encerro e curvo-me pelo Lindo texto de uma Grande Dani Landin.
*Pú
 
No fundo, admiro teu texto. Há um quê de Clarice que amofina. Há um quê d’ eu me sentir uma barata que também amofina. Teu dialeto lírico está à máxima pujança, soando muitas vezes bem barroco [estrambótico], beirando o rococó. A história em essência demonstra a abertura ao “marginal” anunciada na tua última peça. A tripartição é bacana. As citações poderiam ter seus artífices divulgados, pelo menos no fim. Há carência de discussão filosófica, mas quiçá não coubesse. Quem sabe tenha sido uma apoucada porém efetiva incursão existencial que te aproximou de [confundiu com] G.H. Teu palavreado marcante pode tornar teus textos recursivos caso empregues o mesmo estilo em todos. Se bem que não se valeu dele abundantemente no supracitado “marginal”.[Lena] Misterioso, mas após críticas em número, o conjunto não me desagrada.

Ósculo ensandecido, irrequieto por te amimar, F.J.
 
Esse Lena apareceu no meio porque escrevi no trabalho e me mandei por e-mail. Droga, queria escrever um comentário bacana....
 
Lembrei o que ia dizer ao telefone: noutro dia, no Contos da Meia Noite, o Abu leu um do Mário de Andrade que remeteu a uma das cenas desta trilogia. Ao invés de uma barata era um besouro que percorria o corpo da mocinha.

Pra não perder o espírito desagradável: este blog vale mais pelos comentários dos puxa-sacos e do Jordani.

Te beijo.
 
Mais curioso do que me saber lido por indicação (ou será engano mesmo?), é chegar aqui e descobrir esta overdose sinestésica de imagens que pulam das suas linhas. Sinceramente, muito prazer.
 
Dani, por que você comenta o blog da Leca e os flogs da Marcela, e nem no meu "Apenas Sentimentos - Parte 2"? Aposto que você nem gosta de mim!!! Você só gosta da Pulinha, isso sim!!! Beijos :(
 
"Tem sempre alguma coisa atrapalhando a minha chegada a mim mesmo"
Bukowski
 
Bom, esse foi o segundo texto seu que eu li. O do Catarse até que eu encarei numa boa, mas o que você postou aqui... eu reconheço: Ele me amedronta. Não pelo teor dele, mas pela forma como foi exposto.

Enfim, n coisas para comentar, vou deixar para fazê-lo pessoalmente, caso haja alguma oportunidade.

Continue o trabalho maravilhoso, pois o bixo burro aqui vai continuar assimilando o máximo possível do que você e as outras mentes talentosas produzirem.
 
Quando vai atualizar, baby?
 
um pouco enojada, mas nem tanto.
bom, mesmo.
 
Te vivo. Te saudo. Te rio. Te quero. Te amo.
 
Alika says:
qdo olho pra vc, é uma coisa mto simples: é peqena, delicada e decidida... mas seu texto é monstruoso tipo,.. o jeito q vc alcança a transcendencia pelo texto é o inverso de como vc parece alcançar ao vivo.

Adoradora de Paula Dume says:
Ao vivo sou só concretude.

Alika says:
isso... é direta, eficiente, cirurgica. no texto é mais aqela imagem do cavaleiro medieval com um machado gigante em cima de um corcel negro heheuheuhe entendeu como é o inverso agora? ao vivo vc é o jack estripador, no texto vc é a bomba H!

Adoradora de Paula Dume says:
É que eu finjo bem... ao vivo...

Alika says:
hahahh disso tou certo... obvio q tou falando de aparencias, isso ta claro, sei q no fundo vc é uma mistura indefinivel das duas imagens... simplesmente Daniela na realidade..

..mas oq importa é o sangue q vc derrama

talvez minha maior virtude seja minha sensibilidade,.. ai dou sorte de gozar com pensamentos de alguem aparentemente ordinario ;-)

beijão Daniela!
 
"Mas o que importa é o sangue que você derrama..."
 
"Mas o que importa é o sangue que você derrama..."
 
Catita, veja se vinga ou não.
Vou fazer em comunicado mais decente, tá?
 
A poesia é dança malandra, a poesia é samba.
 
Sede.
 
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