breve-brevíssimo ou aquele morre-não-morre

Na iminência do incêndio, o inominável já está à espreita. Uma precisão de dar vida a um que toca, machuca. E lá vai o demônio... embaixo da mesa, na ponta dos dedos, pelas costas, beiço colado ao ouvido esquerdo. De mãos dadas com o diabo, vou ao caminho de Deus. Re-bento. Antes de Maria cerzir as próprias fissuras, o batismo é consumado – a obra já nasce benzida pelo coxo. Fruto de vosso ventre maldito e da maldade de escrever. Ficamos assim: Deus é o significado, o diabo, o significante.

segunda-feira, 1 de agosto de 2005

 

[1ª versão desta, que, inicialmente, é uma] Peça para ser lida

(chega a Mulher. Ofegante e desesperada. Enquanto fala, em tom histérico, alto, gritado, leva as mãos aos cabelos e anda de um lado para o outro, os olhos são lanças que amedrontam a platéia. Poucas peças cobrem-lhe o corpo. Está descalça)Eu perdi, eu perdi! Meu Deus! Onde ela está? Preciso encontrá-la. Tanto barulho: entulho. Tanto entulho, meu Deus, mas eu preciso procurá-la. Eu preciso encontrá-la... Meu De...

(corte brusco. Num outro canto do palco, e percebida pelo jato de luz que lhe foi despejado, é ela. A mesma Mulher, que sendo outra, ainda é a mesma. Fala num ritmo calmo e alienado, quase psicótico em sua obsessão lenta e dolorida. Nas falas diferenciadas, acelera a narrativa, em voz aguda, sua feição passa a ser frívola. E assim vai alternando os tons)
Talvez ela ainda esteja na adolescência pank, nos 15 anos que às vezes me volta. Nos 13. Talvez ela ainda esteja na hemorragia precoce. No vermelho daquele sangue tão singelo e inédito. Empalideceu todinha, moço, precisava de ver, mirou-se no espelho e caiu no chão, como se tivesse levado um susto e morrido do coração! Um susto. Talvez ela tenha de fato se assustado e se escondido atrás do muro. O muro. Daí a mãe começou a rezar que nem louca, chamando Deus e o mundo, palavra que nunca ouvi tanto nome de santo na minha vida! Os sinais vieram cedo, como transpor o muro? Como encontrá-la agora? Talvez devesse procurá-la nas mãos ásperas e grosseiras daquele tio que me tocava em particular. Ou talvez nos dedinhos curiosos do primo que me deflorou enquanto eu, tão generosa, fingia que dormia. Quem sabe, então, no pênis do vovô que... A menina toda desmaiada na maca, com o soro estourado na veia, branca que, cruzes, mais parecia morta que desacordada. Penso, às vezes, que ela esteja presa nas memórias úmidas daqueles fins-de-semana no alojamento, em que os garotos nos mostravam como era "brincar de verdade"... A mãe ajoelhada no chão, chorando e rezando numa disparada só! Ai, moço, olha só o meu braço, fico toda arrepiada só de lembrar! É estranho lembrar... Lembrar daqueles filmes que o menino mais velho da rua nos mostrava - sempre tão diferentes daqueles que eu estava acostumada a ver na tevê - e me obrigava, sempre a mim, a repetir a cena em que a mocinha ficava amarrada na cama e com os olhos vendados, durante horas. Foi uma cena dos inferno, o moço não imagina! E o médico que não chegava por um nada?! Uma aflição, moço, uma aflição! Ou será que eu deveria procurá-la na gaveta das roupas íntimas, nos lápis H5 de meus desenhos, na mocinha de três seios de meus sonhos...? E eu não sabia mais o que fazer, o moço entende minha situação, não entende?
(outro jato de luz em outro canto até então obscuro do palco sinaliza outra presença. E ainda Ela, que foi outra, desdobrou-se em muitas, e em muitos, tantos momentos em que, vivenciando outras, encontrou, novamente, a si. A Mulher está agora sentada, nua e apoiando-se com suas pernas abertas num cômodo velho e sujo, observa-se num longo espelho à sua frente, vertical e fincado no chão. A sua vagina não existe, é um grande buraco ensangüentado. Em suas mãos, além de muito, muito sangue, percebe-se a existência de uma faca, também suja de sangue. Inicia sua fala com feição descontroladamente satisfeita)Encontrei! Eu a encontrei! Como não percebi? Como eu não percebi que ela sempre esteve ao alcance de minhas próprias mãos?! (olha suas mãos com um crescente desespero que a faz desmaiar. Cai no chão)

Comentários:
Um texto quase totalmente frio, com umas retocadas aqui e ali, diferentes do original publicado no veículo Catarse - edição 5.9
 
Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]





<< Página inicial

Arquivos

outubro 2004   novembro 2004   dezembro 2004   fevereiro 2005   março 2005   abril 2005   maio 2005   agosto 2005   outubro 2005   janeiro 2006   maio 2006   agosto 2006   janeiro 2007   dezembro 2007   fevereiro 2009   janeiro 2010  

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Assinar Postagens [Atom]