breve-brevíssimo ou aquele morre-não-morre

Na iminência do incêndio, o inominável já está à espreita. Uma precisão de dar vida a um que toca, machuca. E lá vai o demônio... embaixo da mesa, na ponta dos dedos, pelas costas, beiço colado ao ouvido esquerdo. De mãos dadas com o diabo, vou ao caminho de Deus. Re-bento. Antes de Maria cerzir as próprias fissuras, o batismo é consumado – a obra já nasce benzida pelo coxo. Fruto de vosso ventre maldito e da maldade de escrever. Ficamos assim: Deus é o significado, o diabo, o significante.

sábado, 7 de janeiro de 2006

 

Conto imoral do silêncio e dos diálogos

Era sempre assim. Quando contrariava sua rotina caseira e caminhava de casa até a Igreja, para levar a travessa de torta de palmito que a sua mãe preparava toda semana para o padre, sempre vivia a mesma angústia. Era colocar os pés na rua de paralelepípedos grossos e desnivelados, ajeitar a redonda travessa na cintura - que já ensaiava de lhe escapar das pequenas mãos - que pressentia o porvir, mal-estar. A garota tinha esse vício desde os 7 - e, agora que já alcançava a casa dos 12, ninguém tinha mais esperança de cura. A família vigiava, alarmada; os vizinhos alertavam, fuxiqueiros. Aconteceu que, nesse dia, acordara especialmente propensa a ele. Logo de manhã, a mãe já havia reparado - "Ih! Hoje ela acordou pensa pr'aquele lado". E que lado? - alguém poderia anunciar, por falta de observância. Aquele, uai - aquele do tal do vício.
Mariana de Souza Cruz, menina de protuberâncias precoces, dotada de carnes novas e recém-volumosas, vivia a época do sacrifício da infância, do holocausto da meninice - nascedouro de vontades... E como morria de vontades! Ansiava por loucurazinhas e novidades, sempre no afã de saciar o vício. O tal. Mas conto que foi, pé-ante-pé, equilibrando-se pelas ruas de Ouro Preto, com suas pernas morenas à vista, seus dois inéditos botões de rosa pula-pulando e o dançar do caminhar - requebrado. Foi perfumar a rua com o cheiro de menina-moça; foi acenar existência. Era uma maldita e não sabia.
A luz da vida do meio-dia inundava o espírito, estimulava desejos, incitava à ação. A rua, tão clara e sonora, com seu quê urbano-vivaz, trazia beleza e riqueza. Tão contrária ao universo do eu-sozinho, do vazio escuro de ser um, um-só, um-nada. Seu mundo íntimo se mostrava tão discrepante daquela diversidade de seres, sensações, sentidos; daquela polissemia citadina que ela agregava a si, que a enfeitiçava. Aura. O quente do ar, do corpo, da energia que advinha da gente que passava por ela, ao redor dela, através dela - as pessoas a atravessavam - e que partiam deixando odor, olhar e nó na garganta. Frustração: ensejo perdido.
É: Mariana tinha gana de gente; fome de interação; ânsia de troca, de fusão de almas, de compartilhamento de vozes, dores, toques e fluídos. Sofria da dependência da comunhão com o mundo e, insaciável, queria sentir a todas, a todos, a todas as pessoas. E se ocupar espaço é uma forma de anunciar existência, andar nas ruas é uma forma de se fazer presente, de ser percebido. E percebido por quem? Pelos outros quase-existentes, pelos outros também pouco percebidos. Mas sempre pelos outros. E Mariana partia, atormentada por questões primeiras. Como gerar empatia, impacto, atenção? Como disparar mensagem com sucesso? E como prosseguir com essa troca de mensagens-estímulo, compartilhar sensações-emoção, interagir com os tais outros nesse dito espaço público?
Não titubeou: sacou flecha das costas, preparava o lançamento, escolhia alvo - início de ritual. De princípio, habituou-se a farejar campo de mira, perscrutar áreas de atuação. Mas aquela gente escapava de suas garras - multidão sorrateira, sempre atarefada, deixava a menina na triste solidão de estar no meio do aglomerado. Abandonada, partiu para o tudo-ou-todos, atirando aos montes, aos baldes, para todos os cantos, em sua busca desesperada pelo outro. Assim, tentava laçar com os olhos qualquer existência que se aproximava - devorar. Suas duas bolas de fogo, alucinadas, ansiavam pela cooptação alheia. Procurar, procurar; caçar. E, no impulso incontrolável, deu bote:
"Que horas são, seu moço?" - despejou com o coração no bate-bate. "Não tenho relógio", foi o retorno. "Eu sei, era só p'ra puxar assunto" - rasgou-se toda com a navalha da franqueza. "Seu moço" não moveu feição, considerou-a muito, decerto, com olhar sem desvio, de análise. "Sou Mariana", antecedeu-se. Outro silêncio, regido pelo tal olhar, pairou. Mariana era só súplica, com fartum de quem implora. Ao menos, não era mais apenas-uma, consolou-se em segredo. Eram dois, eram ela-ele, ali, mergulhados num estado estático, num ápice trágico-teatral, no segundo cênico que vale a vida toda. "E eu, Reinaldo", disse, finalmente, silabando as palavras, com cuidado para que não lhe escapasse o momento-fala. "Sua graça toda é Reinaldo de quê?", deu prosseguimento, de imediato. Não houve resposta. "Seu moço" prostava-se diante dela, irremediavelmente mudo. "Diz nada por ca'de quê?", interrogou, com tom de estranhamento. Ele a fitou sério. Puxou o ar pelas narinas, fez que ia responder, ganhou um segundo a mais de tempo e disparou:
"Menina, não sou de desperdiçar palavra que vá bulir com o silêncio" - epílogo.
Purificação.
Conto que, ali, eles existiram por mais uns instantes, contemplando tão singulares existências, sentindo um ao outro, cheios de verdade, corpo, cheiro, magia, angústia, prazer, paralelepípedos, vontade, hormônios, palmito, olhos, desejo, padre, energia, travessa, doença, seios, solidão, diálogo, Igreja, mãe, vida... e silêncio.

Comentários:
Quase-conto cheio de plágios.
Quase-nada.
 
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