breve-brevíssimo ou aquele morre-não-morre

Na iminência do incêndio, o inominável já está à espreita. Uma precisão de dar vida a um que toca, machuca. E lá vai o demônio... embaixo da mesa, na ponta dos dedos, pelas costas, beiço colado ao ouvido esquerdo. De mãos dadas com o diabo, vou ao caminho de Deus. Re-bento. Antes de Maria cerzir as próprias fissuras, o batismo é consumado – a obra já nasce benzida pelo coxo. Fruto de vosso ventre maldito e da maldade de escrever. Ficamos assim: Deus é o significado, o diabo, o significante.

sábado, 7 de janeiro de 2006

 

JURO: não sou Clarice

Largada

Entrou no banheiro com a meta estipulada: banhar-se. Ainda munida de vestes, pudores e ais, trancou-se na futura sauna a qual o cômodo doméstico se transformaria... se houvesse tido tempo. O fato é que virou o trinco, uma vez. Não sabia porque fazia isso, estava a sós em casa. Mas, mesmo assim, sempre cismava de fechar a porta do banheiro quando de sua utilização. Não foi diferente naquela noite. Foi diferente naquela noite.
E assim, na seqüência de ações pré-determinadas, mirou-se no espelho. Ah, o espelho. A questão do espelho merece sempre um tomo à parte. Mas tantos já o fizeram e tão bem sucedidos e... Mirou-se. Viu, como sempre, pessoa desconhecida. Encarou a prístina face. Aquela. Olhou-se muito, decerto. Costumava se observar muito. Detalhes defeituosos, mistérios que seus olhos evocavam, nuvens de elucubrações, lembranças e desejos. Ansiava o mundo pela própria face. Sorteava sonhos... Admirava-se, na verdade. Um querer afagar-se, uma vontade de si mesma. E tantas vezes e tanto tempo desprendido a se olhar que chegava a se apaixonar pelo o que era, pelo o que seria. Admirava-se, na verdade, mais pelo o que era, pelo o que era capaz de ser. E ainda não o era. Mas, ser capaz ou se saber capaz já não é uma pontinha do ser?
Depois de saltos e vôos produzidos graças às evasões estimuladas pela sua face, iniciava-se o ritual quase doloroso, quase mecânico de se despir. Peça-por-peça, pele-por-pele, pêlo-por-pêlo, lâmina-por-lâmina - cicatrizes. Já nua nos seios, cotovelos, sexo e joelhos, ainda ostentava par de meias. Gostava-se assim: ridícula e indefesa: picaresca em suas formas desajeitadas, suas massas disformes, amontoado de carne - corpo -; suscetível sem máscara ou casca, tão sujeita e à mercê de perigos e agressões... tão exposta... tão real... - comoção. Amava-se para sempre assim, amava-se para sempre naquele instante. Uma foto intrínseca, um recorte até-que-enfim verossímil.
Segundos e estava lá na gaiolinha de vidro. Certificou nu dos pés, era toda nu. Equipada de ausência e vazio, prestes a girar torneira, pressentia água. Dilúúvvvio... Traumatizando o seco do corpo, umideci'alma. Encharcou-se. Acalentava com as mãos superfícies e invadia orifícios. Em seu desbravamento inconsciente, descobria texturas, odores, sensações; era terra à vista, era expedição explorada. Mas, ameaça, logo interrompeu viagem, sinal externo. Nem notou-se esbranquiçada pela espuma, ancorou navio e foi observar ao redor. O cenário se constituía, haveria ato trágico. Constatou cheiro-queimado e parca fumaça no teto. Repousou sabonete, receio.
Não poderia classificar o que foi aquele susto, refúgio da alma. Tralma. Um relâmpago no coração. Não poderia. Não saberia precisar sucessão de sentimentos-súplica. Tampouco o desespero incoerente daquele "instante-já". Sabe que ouviu sinos de ouro tocarem. Sabe também que viu faíscas contínuas escaparem do objeto que, inicialmente, jorrando cachoeira, passou a cuspir raios. Clarão no teto, luzes tzzzz. Um curto dentro de si. Espanto. E o impulso primacial: a fuga.

Agora: selvagem.
baque certeiro-incerto de-de-desejo de sumir é o ddesespero que escorre pelos OLHOS e pelas células desse corpo MALDITO .... !! DEUS violenta mãos que puxam-que-puxam box que emperra não sai do lugar bicho acuado pânico crescente faíscas puxa mais uma vez aaaaaaaaaa ninguém vem ........ não há saída tempestade merda! sangue, dedos adrenalina do medo da dor da angústia da repuxa-empurra o vidro imóvel vai, vai, vai vontade de ir embora de vez mais-uma-vez e gesto, gesto, gesto BRUSCO!.... foi! ah
Livre, fugiu. Foi para longe. Nua aos pingos, foi deixando a água dos pés molhados registrar o caminho da liberdade. Parou de súbito e, estranho, não havia alívio: sabia que agora viria o pior. No estaticismo vegetal externo, olhar parado, expressão de choque, debruçava-se sobre o seu tumulto interno. Tomada pela confusão que flertava com raiva, vergonha, melancolia, desmontou-se no chão. De joelhos, ao feitio da oração, ainda conseguiu esboçar gemido pungente, e entregou-se à prece epifânica. Pranto geral.

Comentários:
É que Clarice Lispector é fraca.
 
Não, não eh!
 
Não? Por que?
 
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