breve-brevíssimo ou aquele morre-não-morre

Na iminência do incêndio, o inominável já está à espreita. Uma precisão de dar vida a um que toca, machuca. E lá vai o demônio... embaixo da mesa, na ponta dos dedos, pelas costas, beiço colado ao ouvido esquerdo. De mãos dadas com o diabo, vou ao caminho de Deus. Re-bento. Antes de Maria cerzir as próprias fissuras, o batismo é consumado – a obra já nasce benzida pelo coxo. Fruto de vosso ventre maldito e da maldade de escrever. Ficamos assim: Deus é o significado, o diabo, o significante.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

 

Exílio


Rebuliço. Dezenas de cadeiras se arrastam, cadernos se agitam. Meninas enrolam os cabelos úmidos em coques desiguais, meninos os desfazem. Risinhos. Depois, gargalhadas. Bochechas febris. Suor nas têmporas. Ofegantes, os pupilos suspiram, egressos da quadra. Agora na sala, os bocejos se avizinham - perspectiva: avalanche de horas chatas.
O lufa-lufa é laconicamente interrompido pelo som metálico, cada vez mais próximo, dos saltos de Tia Wanda. Não havia dúvida: aqueles tlec-tlec sempre puderam ser identificados há anos-luz. Tlec. Tlec. Tlec. Tlec. À medida que o barulho algoz se intensificava, o silêncio também aumentava. Tlec, tlec, tlec, tlec. Naquele momento, apenas um som existia. Tlec, tlec, tlec, tlec. Ela vinha. Tlec, tlec. Na porta, um início de sombra. Tlec. Tlec.
Ei-la.
1,50m de altura, inflacionados pelo sapato alto, vestiam saias longas e puídas. Os óculos e a gengiva se destacavam. Havia ainda a ausência de um dente lateral, percebida apenas nos dias de sol. Eu tinha certeza: Tia Wanda era um desenho animado.
A professora rapidamente distribuiu figuras somente com contorno, sem qualquer cor ou preenchimento. Eram animais, flores, planetas. Todos pálidos pelo branco do papel. "Mãos à obra!". Giz de cera, tinta, pincel.
Mas, decepção, a minha figura era só um menino. Nada desses bichos que povoam os mares ou as florestas, nem mesmo plantas carnívoras e gulosas, ou ainda objetos espaciais. Era só um menino, desses que eu via todos os dias e que eram inconvenientes e cheiravam mal. Torci o nariz. Passada a frustração, atirei-me à empreitada.
Ao cabo de 20 minutos, obra de arte se via. Um garoto pintado de marrom-terra com cabelos verde-alface caracterizava meu desenho. Expunha-o em cima da mesa, esperando pelo sinal de entrega. Só que Aldo, o menino da carteira ao lado, observava aquela mancha marrom-verde com ponta de riso nos lábios. Não se contendo, comunicou a vizinhança. Logo, um grupo já ria efusivamente e sussurrava comentários aparentemente muito engraçados. Olhava eu o meu menino-borrão e me afeiçoava ainda mais a ele. Vontade de beijá-lo. E se ele tivesse gosto, cheiro, fosse macio? E se saísse do papel e me envolvesse em abraço? Qual seria o tom de sua voz, o contorno de seu sorriso? Num lance, pousei minha cabeça sobre o papel e lá fiquei. E, me parece, a aula acabou.


Comentários:
Truffaut.
 
Ela voltou.
 
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