breve-brevíssimo ou aquele morre-não-morre

Na iminência do incêndio, o inominável já está à espreita. Uma precisão de dar vida a um que toca, machuca. E lá vai o demônio... embaixo da mesa, na ponta dos dedos, pelas costas, beiço colado ao ouvido esquerdo. De mãos dadas com o diabo, vou ao caminho de Deus. Re-bento. Antes de Maria cerzir as próprias fissuras, o batismo é consumado – a obra já nasce benzida pelo coxo. Fruto de vosso ventre maldito e da maldade de escrever. Ficamos assim: Deus é o significado, o diabo, o significante.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

 

dos outros, olhos de cão

Uma tentativa fracassada de decantação de experiência fílmica

(Entra o Diabo, acompanhado de três ou quatro demônios, carregando nas mãos correntes de ferro que passam pelo pescoço de Adão e de Eva. Uns os empurram, outros os puxam para o inferno. Outros aparecem dançando diante deles como para manifestar a alegria em virtude de sua perdição. Alguns, vendo-os se aproximar, apontam para eles, agarram e os jogam no inferno. Uma grande fumaça se eleva. Ouvem-se gritos de alegria e um barulho de caldeiras e caçarolas se entrechocando. Depois de alguns instantes os diabos saem e correm em todas as direções na praça, com exceção de alguns que continuam no inferno)*

DVD no aparelho, ajuste na televisão, play. Súbito: morri.

No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus

Na verdade, no princípio, foram as dores primeiras, tais quais as da menina violentada em processo de abortamento, depois vieram o medo, a culpa, a ânsia, o vômito, o choro sentido, avançaram as dores, a revolta e, num quando, faleci. Depois, ressuscitei para escrever as Palavras. Mas "a angústia continua".


As aspas são da mãe da adolescente estuprada à caminho da escola. A menina, agora grávida, recebe a permissão de interromper a gestação e se submete à bateria de exames e procedimentos médico-legais que possibilitam a expulsão do feto indesejado. Essa é uma das histórias que compõem o documentário O aborto dos outros, da cineasta paulista Carla Gallo, e que pontua todo o filme. Mas a narrativa não começa aí. À medida que os sons de hospital diminuem e o branco imenso vai dando lugar a imagens cada vez mais definidas, saímos de trás de um biombo, do esconderijo da vida real, e nos aproximamos da entrevista de uma garota sem rosto, mas com voz, cabelo, pele, a uma psicóloga. Durante o relato íntimo, o espectador invasivo é apresentado aos fragmentos deste corpo vitimado pela violência. A orelha de onde pende um brinco, o cabelo enrolado displicentemente por um prendedor de plástico, os ombros nus e parte das costas deixada à mostra por uma blusa de alça. Traço estilístico marcante – e mais e sobretudo: expediente de preservação da mulher que, paradoxalmente, revela tanto, o que acaba por se tornar recurso estético –: recortes de corpo que, em lances de metonímia, são o próprio corpo, que, por sua vez, é a própria mulher. O corpo como porta-voz do discurso feminino. "Como você tá se sentindo depois de tudo isso que aconteceu?" O silêncio é a resposta possível.

Já deitada, à espera das novas dores que induzirão o parto precoce, a menina executa lentamente um movimento de tirar e colocar o anel do dedo – essa é a imagem que preenche toda a tela –, aludindo a uma cópula – ou deve ser essa minha cabeça. E daí o mexer das pulseiras, a pinta embaixo da boca, a sobrancelha grossa. A mãe também não tem rosto, mas está ali inteira, por partes. Os dentes, a boca deformada pelo choro que fala ao telefone com um parente, pedindo por oração: "Eu sei que Deus é contra isso..."

E perguntou o Senhor a mulher:
Por que fizeste isso?


Na delegacia, antes de entrar com pedido de aborto, a mãe teve de ouvir de um escrivão: "Vocês não pensem que o aborto vai ser tão fácil assim. Primeiro porque é crime, segundo porque tem que autorizar... E até lá, ela já vai estar com seis meses e..."

E a mulher disse ao Senhor:
A serpente me enganou, e eu comi.


A cada quadro, um jato branco me invade, e conheço outra história contada por um par de olhos verdes. Um mês de sexo forçado, porque o marido não aceitou seu desejo de separação. Como ele não saía de casa, eles moravam com os pais dela, a mulher aceitou a "proposta indecente" por completo desespero. O sexo quase sempre acontecia acompanhado de muito choro. "E ele continuava". Em meio ao pesadelo, não usaram camisinha em uma das vezes e ela engravidou. Ele queria, numa tentativa de "segurar o casamento", ela obviamente não: seria "filho de uma violência". Apelou ao Cytotec, um dos mais conhecidos métodos abortivos, e após, o corpo seguia em pranto. Sangramentos excessivos, correntes. "O que está acontecendo dentro de mim?". Enquanto isso, descoberto o aborto, ele ameaçava denunciá-la. Outro jato. Sou catapultada.

Ainda no hospital, a adolescente me mostra seu caderno de desenhos. De um modo geral, motivos pueris de casas e árvores. Em um deles, uma grande maçã mordida. Pousa os dedos sobre a caixa de lápis-de-cor, desliza sobre alguns deles e finalmente escolhe um para continuar colorindo. Segue sonhando um mundo de traços e linhas mágicas. Conta para a documentarista que não sabe do pai, há muito ausente. Lembro que a mãe havia dito a psicóloga, num desconcerto, que a filha desejava ganhar uma Barbie de presente.

Às portas fechadas, um grupo de médicas monta um painel de argumentos que apóiam a decisão pelo aborto de uma mulher estuprada. Pelo mosaico de relatos, construímos um perfil, ainda que desfocado, daquela evangélica, meia-idade, que sentiu muita vergonha em contar a alguém sobre o ocorrido e, quando finalmente desabafa, é alertada por uma "irmã da Igreja" a procurar um médico. Não passa pela sua cabeça a possibilidade de uma gravidez, teme por alguma doença. Ao final das explanações, o médico pergunta se há algum indicador de "falsa alegação". Não há. Do lado de fora, a mulher aguarda sentada em uma penumbra do hospital; corpo encolhido, mãos nos joelhos, os pés metidos em sandálias simples que espalmam no chão.

Uma torneira pingando é tudo o que vemos ao ouvir o relato de uma mulher que passou por cinco abortos, quase sempre orquestrados por uma mãe de anjo. Em um deles, à procura de uma ajuda mais "profissional", pagou mais caro, mas o trabalho foi menos violento. Foi dopada e simplesmente apagou. “Eu morri”. Seu discurso, caracterizado pela desinformação, vai do riso ao choro. Inicialmente esboça uma risada, sem-jeito, como se não soubesse como agir com a própria matéria da narração ou como se soubesse, e o riso se originaria exatamente daí, da gravidade dela, para depois acabar em tom de arrependimento declarado, em lágrimas que não vemos com os olhos. Apesar de ter uma filha, fruto de uma gravidez desejada, anuncia uma solidão dolorida e a culpa por um crime, não do ponto de vista da lei, mas de outra ordem. "Eu sei que eu vou ter o meu castigo. Aqui se faz, aqui se paga. O castigo vai vir de Deus". A torneira não cessa de pingar.

À época, sem emprego, com dificuldade até para se sustentar, engravidou por descuido e decidiu pelo aborto. Uma noite toda vivendo um pesadelo que custou a passar. O corpo convulsionava, a temperatura despencou. Sentia-se tão gelada, mas tanto que "parecia que eu tinha morrido. Acho que eu morri". Passado isso, foi denunciada e ficou presa por semanas. Os braços inchados pela algema apertadíssima, a dificuldade em ir ao banheiro por conta do revezamento de policiais que a vigiavam. "Tantas mulheres fazem isso", diz o delegado, "eu não sei o que você tá fazendo aqui". Acabou sendo solta e, no momento da gravação, ainda sem entender a motivação da denúncia de uma pessoa tão próxima dela e dos seus. "E olha que ela também já fez aborto..."

A obra, basicamente do universo das subjetividades narrativas – dedicado "às mulheres que generosamente contaram as suas histórias", vozes vencidas como esta – que remetem diretamente ao objetivo, à realidade concreta, palpável, traz ainda um arcabouço de falas de profissionais dos campos do Direito e da Medicina que pontuam com dados técnicos, estatísticas, questões da bio-ética e da filosofia. Registra-se, e o registro só pode nos trair, é a sua função, 70 mil mortes por abortamentos em países em desenvolvimento que possuem leis restritivas. A condenação como um duplo fracasso, característica latente do aborto – o fracasso da sociedade, o fracasso do corpo – potencializada pela ineficácia de uma lei que aumenta riscos, culpas, discrepâncias.

Se fiz mal, sofro a punição: sou culpada, serei julgada por Deus. Errei gravemente diante de Deus e diante de você.

Uma discussão que passa pelas histórias individuais e pela História coletiva; pelas micro-realidades, fábulas femininas, que dizem respeito a um percurso fêmeo. Executando esse movimento, se aceitarmos uma história da trajetória da mulher (idéia que deve ser devidamente problematizada tendo em vista as múltiplas origens e os diversos contextos culturais), história vencida, esta história passa por uma história do corpo, cujo tomo central é atravessado pelo bólido utópico da autonomia. História, toda por ser escrita e posteriormente apropriada como direito – à história, ao corpo, ao desejo, ao deus –, construída com base na premissa de um corpo material e de um corpo simbólico, ou de uma dimensão simbólica do corpo, ambos expropriados. História de uma miríade de corpos de variados donos, de infinitos procuradores – o não-pertencimento de si.

Que ela seja submissa à sua autoridade e os dois à Minha vontade. Eu a formei de sua costela: ela não é uma estranha, nasceu de você. Modelei-a conforme seu corpo. Ela saiu de você e não de outro lugar. Governe-a pela razão.

Ao se despedir, deixando o hospital, templo do crime legitimado, a mãe da adolescente desconfia de um sofrimento que passa, já que o corpo segue sem aceitar. "A angústia continua. Não mudou nada. Eu continuo sentindo que faltou alguma coisa para fazer. Sentimento que não dá nem para explicar direito".



* Le jeu d’Adam

Comentários:
O que distancia o que acabei de ler de uma peça? Deveria escrevê-la.
 
Concordo.
 
Você devia postar mais, motivo de não perder os dois leitores que lhe restam.
 
É, bem.

Concordo.
 
três....
 
Interessante.

[Será que você ainda é capaz de perceber ironias?]
 
[sua vez.]
 
Quatro.
 
essa tua escrita, essa tua-você!
 
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