Na iminência do incêndio, o inominável já está à espreita. Uma precisão de dar vida a um que toca, machuca. E lá vai o demônio... embaixo da mesa, na ponta dos dedos, pelas costas, beiço colado ao ouvido esquerdo. De mãos dadas com o diabo, vou ao caminho de Deus.
Re-bento. Antes de Maria cerzir as próprias fissuras, o batismo é consumado – a obra já nasce benzida pelo coxo. Fruto de vosso ventre maldito e da maldade de escrever.
Ficamos assim: Deus é o significado, o diabo, o significante.
- Que quer dizer dedo do meio?
- Manda tomar no cu.
O espelho refletia curiosa pintura: com tronco envergado, pernas erguidas e arcadas, uma pré-adolescente examina sua rosa íntima, com labirintos e sulcos desabrochados, calcando sua análise no reflexo que obtinha da imagem. Dedilhava-se. A pele flácida e viscosa se avermelhava a cada toque mais veemente, a cada riscar de unha, a cada investida mais profunda. Os dedos, já umedecidos de substância pegajosa, não se cansavam. Ocupada que estava em sua empreitada, não percebia que eu a observava, entediada.
Sempre que ia em casa, Clô ritualizava sua visita, antes das brincadeiras de bonecas e das imitações de cenas noveleiras de casais, dirigindo-se até o quarto de mamãe pra se olhar. Dizia que era de precisão esse hábito. (As mulheres de sua família viviam sob a sina de uma doença vaginal hereditária, e ela deveria freqüentemente se tocar a seco para verificar qualquer mudança no local.) Dizia também que na própria residência não poderia fazer o exame, já que não gozava de privacidade por lá e que só se sentia à vontade na minha presença.
Um dia, pediu favor. Aproximei-me (sempre mantinha certa distância, com medo de molestá-la). Clô explicou-me que não poderia mais prosseguir sozinha em sua prática. Que, como nunca surpreendia qualquer alteração, deveriam ter seus dedos se acostumado àquela textura. Agora, ela precisava de outro meio para o toque. Solicitou ajuda. Explanou rapidamente acerca dos novos procedimentos que o exame necessitava, orientando-me na maneira pela qual eu deveria movimentar minha língua na região. Dessa forma, a partir de então, que nova pintura o espelho passou a refletir.
Já criança, Menininha tinha lá suas obsessões. Tinha desejo de Deus. E como se excitava no ambiente sagrado! À época do Catecismo, deveria ir religiosamente à Igreja, todos os domingos. Quando faltava - por melancolia, preguiça, sono ou cólica –, flagelava-se com pensamentos de expurgação. Como ser perdoada? Nesses casos, passava a semana inteira como uma santa. Era afável e justa com os demais, tinha bons olhos para todos, compreendia atitudes questionáveis, isolava-se no silêncio, privava-se de companhias e excessos. (Que tudo passasse depois.) Só não podia, absolutamente, resistir ao quarto escuro. Lá, sozinha e acompanhada de demônios, fazia o diabo consigo mesma.
A despeito de que, nas semanas normais, em que não faltava com a palavra e com a freqüência, a vida seguia bem menina. Menininha, menina que era, vivia a se envaidecer, a se ajeitar, a se colorir e descolorir. Rezava ao pé da cama, escondia-se no cobertor, tomava café com torradas, sorria, pensava em bicho-papão e na professora. E, quando do domingo, experimentava ápice.
Antes de adentar solo divino, deixava-se surpreender pela imponência arquitetônica. Fazia o sinal da via crucis e ia. E como. Na eminência de se acomodar em um dos balcões, já vivenciava as alterações de seu corpo. Umedecia-se toda. Os sons, o eco, o cheiro eram os primeiros a incomodá-la. Depois, as Imagens. As Imagens. E Menininha seguia as horas matinais domingueiras. Esforçava-se para manter os lábios em movimento a fim de que se simulasse oração; mantinha feição séria com intuito de denunciar devoção. A Missa seguia lá fora. Lá dentro, labaredas. Um fogo que ardia – imagens e fantasias. Uma quentura entre as pernas. Era Deus?